Leiam este texto escrito por um professor de filosofia que escreve semanalmente para o jornal O Torrejano.
Tudo o que ele diz, é tristemente verdadeiro...
O atestado médico
por José Ricardo Costa
"Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância.
Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.
Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.
Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la.
Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir deste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.
Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.
O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente.
O próprio legislador, que manda a um p rofessor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.
Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.
Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.
Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.
Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados.
Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o 'ET', que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D.Afonso Henriques, que Deus me perdoe.
A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados.
Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal.
Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.
Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho.
Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.
Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.
Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.
Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio."
Faz pensar não faz??? Para mim, é uma excelente forma de constatar o "estado de sítio" em que o nosso país se encontra....
Deixem as vossas opiniões, o que vos apraz dizer perante este cenário?
Saudações diabólicas.
10 comments:
mas que grande texto esse..
e realmente tem razão..
o nosso país está doente e não há maneira de melhorar :(
bom fim de semana :)
Texto bonito.
E tem razão, são muitos os exemplos em que só se lixa quem diz a verdade.
A tal ponto de as pessoas nem terem coragem de a dizer.
Mas o grave mesmo é o entorpecimento que isto provoca e o nem querer saber se é verdade ou mentira.
Nitidamente o triunfo dos mentirosos
Bjs
Eu não só constato o “estado de sítio” em que se encontra o nosso país como não encontro o sítio em que está o nosso estado.
Somos um país de actores e trambiqueiros.
Beijocas
MIGUEL,
Bem lá grande é ele, mas que tem fundamento lá isso tem...
"o nosso país está doente e não há maneira de melhorar :"(- É triste mas é verdade.
Beijinhos.
TIPP,
Sem dúvida, por isso é que as más condutas prevalecem.
É nitidamente preferível dizer uma ou mais mentiras, do que dizer a verdade.
Bastante triste o ponto a que chegámos.
Beijinhos.
PINOKA,
"Eu não só constato o “estado de sítio” em que se encontra o nosso país como não encontro o sítio em que está o nosso estado."- Visão absolutamente brilhante, analogia perfeita.
Pena que só poucos vejam isso.
Beijinhos.
grande texto, ri-me em alguma spartes.
de facto isto anda muito doente...vai um aspegic?
CASEMIRO DOS PLÁSTICOS,
Cá por mim já não é só um aspegic, tem que se tomar também xanax!!!! LOL
Beijinhos diabólicos.
Força Diabólica. É pena que isto não avance lá para fora e fique só condicionado ao Blogue.
Não te deixo uma Beijoca. deixo-te uma data delas
Até o meu canito abanou o rabo...
Pois é, mas da minha parte já imprimi e entreguei a alguns amigos, cabe-nos a todos passar a informação.
Beijokas para ti e festinhas ao canito! LOl
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